Marcos Bazzana DelgadoInspetor - GCM/SP
Caros leitores,
Este artigo tem como única e exclusiva finalidade expressar uma opinião pessoal a respeito de uma incoerência legal trazida na lei 10.826 combinada com o Decreto 5.123 e, quiçá, promover um debate no parlamento nacional visando à reforma das incongruências que serão apontadas, ou uma possível construção de parecer junto ao Poder Judiciário como forma de “salvo conduto” para a prática encontrada no cotidiano. Não significa, com isso, que avalizo a conduta de servidores da instituição da qual faço parte, onde tenho o dever legal de exercer a fiscalização das atividades, e o uso do poder disciplinador ante as irregularidades que forem comprovadas.
Propus-me a discorrer sobre o tema porque certa vez, em entrevista ao blog Os Municipais, como presidente da Associação de Inspetores das Guardas Municipais, foi perguntado sobre o que eu achava do Estatuto do Desarmamento, onde respondi que o referido diploma legal contém inúmeras aberrações. Percebendo que o assunto merecia maior atenção decidi escrever, e vou começar a enumerá-las por meio deste artigo, onde pretendo citar uma delas.
O Decreto 5.123 e a Lei 10.826 – Estatuto do Desarmamento, entre as suas inúmeras dissonâncias, tem uma que trouxe o entendimento de que um determinado profissional da área da segurança pública deve se sujeitar à necessidade de ter que possuir dois tipos de autorização para portar armas de fogo de propriedades diversas, ainda que elas sejam do mesmo calibre.
Melhor explicando, segundo o entendimento que podemos depreender dessa legislação, um mesmo profissional deve possuir uma habilitação para o porte da arma institucional e outra para o porte da sua arma particular.
Essa exigência, sob vários aspectos, não é coerente. Citaremos dois.
Primeiro:
A autorização para portar arma de fogo é o resultado de uma série de treinamentos e aprovações em vários exames que buscam aferir a capacidade da pessoa para fazer o correto uso do equipamento.
Antes de se conceder o porte de arma institucional, verifica-se a capacidade psicológica da pessoa interessada. Verifica-se a aptidão teórica, por meio de provas escritas, aferindo o conhecimento jurídico do candidato a respeito das legislações que envolvem o uso da arma, além dos conceitos sobre as características do armamento que se pretende portar. Avalia-se o conhecimento técnico e operacional sobre a utilização do equipamento. Por fim, é verificada a capacidade de se fazer os disparos, com uma exigência mínima de acertos do projétil no alvo.
Temos então que a exigência para a concessão do porte de arma institucional é maior que a exigência para concessão do porte de arma particular. Isso se explica no fato de que a atividade policial exige muito mais preparo do agente, visto que ele estará mais exposto às necessidades de utilização dos meios letais durante o turno de serviço, subentendendo que terá a obrigação de sempre agir para proteger a sociedade em nome do Estado.
O detentor da arma de fogo particular, se não for policial, terá o equipamento consigo tão somente para a sua segurança, ficando desobrigado de agir em defesa de terceiros.
Sendo assim, se o agente demonstrou sob todas as formas ser ele detentor do necessário equilíbrio e preparo para atuar com arma em um turno de trabalho, que às vezes pode passar de 12 horas, desnecessário seria ter que comprovar que tem a mesma aptidão para portar a arma em período de folga, onde a eventual necessidade de uso será bem mais reduzida e as condições de tensão serão bem menores.
Portanto, sendo a arma de fogo de propriedade da instituição, ou sendo a arma de fogo de propriedade do agente, sendo elas do mesmo potencial ofensivo, concluo que aquele que pode “o mais”, também pode “o menos”.
Segundo:
Em condições normais e dentro de uma coerência obvia não se exige dois tipos de autorizações diferentes para fazer a mesma e única coisa.
Devemos ter em mente que o ato de “portar arma de fogo” é único. O que o agente faz com a arma de fogo institucional também o faz com a arma de fogo particular. Nos casos onde a lei permite o uso de arma de fogo institucional fora de serviço, o agente vai portar arma de fogo da mesma forma que faria se a arma fosse particular. O porte seria do mesmo jeito, sendo com a arma dele ou sendo a arma da instituição, ou seja, com arma velada em algum local do corpo, acessível para o saque em caso de necessidade, oferecendo o mesmo potencial de letalidade no uso. Então, a conclusão que tenho é a de que o porte de arma de fogo é uma coisa indivisível.
Os atributos para portar arma de fogo, com exceção da exigência legal de possuir uma função policial, são inerentes à pessoa. Ela é, ou não, capaz de portar arma. Não consigo vislumbrar um ser com capacidade de portar uma arma porque o bem pertence ao Estado, e não possuir atributos para portar outra arma equivalente pelo simples motivo do bem ser de sua propriedade.
Uma vez que lhe foi concedido um porte de arma institucional, reconheceu-se perante as autoridades constituídas e perante a sociedade que aquela pessoa detém plena capacidade para fazer o correto uso de uma arma de fogo de uma determinada categoria. O agente foi considerado apto. Imaginar o contrário seria o absurdo de avaliar que ao guardar a arma institucional e se apoderar da arma particular o agente perderia a sua aptidão para o uso adequado do equipamento.
Se assim não fosse, estaria este agente impedido de transportar uma arma de fogo apreendida, porque ela não seria de propriedade da instituição.
Por este motivo, concluo também que as condições de porte são inerentes à pessoa, não relacionada com a propriedade da arma. Nesse sentido, vejo que o possuidor do “porte de arma” pode portar a arma de quem quer que seja a propriedade, desde que ela seja do calibre a ele permitido, e que esteja legalmente registrada junto ao órgão competente
Essa mesma linha de raciocínio também poderia ser aplicada aos casos de uso restrito de arma de fogo nas atividades funcionais, quando há proibição de portá-la no período de folga, com o argumento de que o número populacional da cidade sede da instituição seria insuficiente para tornar o agente habilitado a fazer uso do equipamento de defesa enquanto não está trabalhando. Imagina-se com isso que, ao deixar o trabalho, por questão populacional insuficiente, o agente perderia a sua aptidão ou passaria a não ter mais equilíbrio para discernir sobre o memento oportuno de utilizar a arma que estaria em seu poder. Mas, sobre esse aspecto também absurdo, falaremos em outra oportunidade.